quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A troca

 

A falta de peso causada pela inércia dos órgãos abdominais de Júnior o alertaram que o elevador iniciou o breve percurso que o levaria do térreo ao sétimo andar. O rapaz negro sentia certa nostalgia com o aviso na forma de um frio na barriga todas as vezes que o transporte o proporcionava, o que não o impedia de soltar um súbito ar pelas narinas, como se sentisse alguma necessidade de esboçar de alguma forma que aquilo o divertia de certa forma. Olhava para o indicador digital que mostrava estar passando pela garagem; a viagem não seria longa, mas o daria tempo suficiente para se virar e olhar-se no espelho enquanto ouvia "Bosco" do "Placebo".
   (2.º andar)
   Estava levemente encharcado, não por ter sido pego desprevenido pela chuva, mas simplesmente por gostar de se molhar. Além do mais, a chuva não estava tão forte a ponto de necessitar se proteger. De calça jeans claro e coturno azul marinho, uma blusa branca de manga comprida protegida por uma jaqueta verde musgo.
   (4.º andar)
  Cabelos trançados em nagô, com poucos fios se rebelavam contra as tranças que os prendiam;  normais até mesmo quando recém feitos, o que não o incomodava. Além do penteado combinar com seu rosto alongado. Porém, seus olhos o incomodavam um pouco, não pela coloração castanha geneticamente programada pelos seus genes dominantes. Júnior adorava sua origem, amava seus olhos, afinal, se os olhos eram a janela da alma, então sua alma era realmente negra.
  (6.º andar)
   O que não gostava era do "azul" contido em seus olhos castanhos, a melancolia que o afundava em dois buracos de terra. À sete palmos de profundidade no âmago de sua "alma".
   (7.º andar)
   A porta do elevador se abriu acompanhada da sineta característica. Júnior saiu, caminhou calmamente em direção ao 702 enquanto mandava uma mensagem para Carla: "Cheguei". Retirou os fones de ouvido. Ao se aproximar da porta, o rapaz ouvia uma música abafada vinda de dentro do apartamento.  Após alguns minutos de espera, a porta se abriu lentamente, até uma distância de um palmo, e um doce aroma de amêndoas invadia o ar, como se anunciasse a chegada de uma divindade que se revelou sob o avatar de um rosto delicado, com lábios carnudos e olhos azuis penetrantes, uma mecha castanha clara e ondulada caindo sobre o  lindo rosto. Sorriu enquanto sua mão se estendia pela fresta da porta e o puxava para dentro da casa.
   Júnior e Carla se beijaram longamente, enquanto imergiam ao ritmo constante da música, que, apesar de ainda estar abafada, era possível reconhecer que se tratava de "Wicked Games" do "The Weeknd". Carla o puxava pelo casaco verde musgo enquanto as mãos dançavam pelas costas um do outro. A mulher o puxava sem desgrudar do seu homem, beijando-o incansavelmente enquanto a música, em looping aumentava progressivamente a cada passo em direção ao quarto.
   Atravessaram o corredor aos tropeços e chegaram no quarto de Carla. Apenas a luz do abajur iluminava parcialmente, ao lado do armário embutido branco. Júnior foi jogado na cama de solteiro por Carla, que não demorou para engatinhar em cima da cama, até seus lábios se aproximarem:
   _ Não vai me deixar ao menos tirar o coturno? Vou acabar sujando sua cama _ brincou seu companheiro negro.
   _Jú... Acha mesmo que estou preocupada com as roupas de cama nesse momento?
   _Não sou eu quem vai lavar depois. Você nunca deixaria.
   _Podemos parar de falar, só um pouco?
   _Tudo bem...
   Com um pouco de dificuldade, Júnior tirou o coturno esquerdo com o pé direito, logo após retirou o coturno direito com o pé esquerdo. As meias foram um pouco mais complicadas. Mas após algumas dezenas de segundos, o rapaz conseguiu retirá-las. Carla o fez se sentar e retirou sua jaqueta. Júnior se deitou novamente, com sua amada sentada em cima dele, que podia vê-la de lingerie negra e cinta-liga, realçando perfeitamente seu corpo que tremeu ao toque másculo em seus seios.
   Júnior voltou a se sentar e a segurou por trás com um braço, e com um giro, passou a ficar por cima de Carla, que sorriu mordendo os lábios inferiores. O rapaz beijou os seios da mulher que deixou escapar um gemido:
   _Estamos sozinhos?
   _Júnior...por favor...de novo não...não agora. Sabe o quanto eu te quero. Por favor...Podemos tentar_ Júnior a interrompeu calmamente:
   _Onde ele está?
   Carla suspirou desistindo:
   _No armário...meu bem..,'te' amo...
   _Eu também 'te' amo, meu bem..quer que eu fique?
   _Não...eu nunca pediria esse tipo de coisa, pode ficar na sala enquanto ele termina.
   _Tudo bem, estarei ouvindo música, manda mensagem se precisar.
   _Sabe que eu preciso...
   Júnior sentou-se na cama, soltou um súbito ar pelas narinas acompanhados de um sorriso, a beijou na testa e na boca, beijou seu pescoço e saiu do quarto, fechado a porta. "Wicked Games" se tornou novamente um som abafado, inspirou fundo, ainda sentindo o aroma de amêndoas em seu corpo, como se Carla ainda o abraçasse.
  Ainda sentia as vibrações da percussão da música do quarto, pôs os fones de ouvido. Se dirigiu à sala e sentou-se no sofá e fechou os olhos, apertou o play do seu celular e "Where The birds Always Sing" do "The Cure" começou a tocar, também em looping.
   Cochilou após a terceira repetição...não sonhou.
   ...
   Foi trazido de seu estado de inexistência por um toque quente no rosto e um cheiro de café misturado ao doce aroma de amêndoas. A mão passeou até seu queixo que foi puxado para receber um beijo. Júnior não se permitiu dar mais que um selinho, com medo de estar com bafo. Principalmente por ter notado que Carla escovou os dentes. Júnior abriu os olhos e a viu com os cabelos desgrenhados, usando sua jaqueta verde musgo, segurava duas canecas. Não usava mais as meias da cinta-liga. O rapaz aceitou de bom grado a caneca. Assoprou um pouco o líquido negro e tomou um gole tímido, que não o impediu de queimar a língua. Deu espaço para Carla se sentar ao seu lado e perguntou:
   _Foi bom pra você?
   _Não começa, Jú...Não faça isso consigo mesmo, e muito menos comigo.
   _Desculpe...foi a coisa mais apropriada que consegui pensar...não queria soar implicante.
   _Isso é muito estranho pra mim, ainda mais por amar você...não é tão fácil quanto nas primeiras vezes quando...achei que fosse só um fetiche ou uma fase... sei lá! Pensei que você iria superar isso.
   _Eu também amo você..desculpa, mas não consigo superar essa "condição"...
   _Tem certeza que o problema não é comigo_ Suplicou Carla_alguma coisa errada que eu faço, algo que eu possa melhorar?
   _Não, você é perfeita, Carla. O problema sou eu que não consigo mesmo enrijecer.
   _Tem certeza que você não é gay?_ Carla riu da própria desgraça.
   _Tenho certeza, amor, sexualidade não tem nada haver com meu estado.
   _Ah não? Como pode ter certeza se não funciona comigo?
   _Você é lésbica?
   _Não.
   _E como sabe?
   _Nunca me interessei em experimentar com outras mulheres.
   _Já se apaixonou antes de perder a virgindade?
   _Muitas vezes.
   _Entende que sexualidade não tem nada a ver com experiências. É muito mais íntimo. Ninguém pode se apaixonar por um sexo que não seja o que a atraia. E eu nunca me apaixonei por um homem.
   Carla ficou sem argumentos, assim como todas as vezes que ele repetia esse discurso, afinal ela precisava ouvi-lo.
   _Desculpa por se apaixonar por alguém quebrado como eu...Queria poder te dar tudo o que queria.
   _Mas você me dá, meu bem...
   _Só não a satisfaço...
   _Você quer deixar esse acordo de lado? Olha, não me importo em fazer abstinência como você...
  _Não, Carla, não é uma abstinência, é uma prisão. Não me importo em continuarmos assim e...mudando de assunto, o 'cara' ainda está aí?
   _Ele já foi embora a alguns minutos antes de começar a passar o café...eu..eu sinto que te traio cada vez que você me deixa excitada para um desconhecido me comer.
   Júnior ficou com lágrimas nos olhos, mas não piscou para evitar que as mesmas escorressem, respirou fundo:
  _Jú..não se acalma, se solta, extravasa, fica com raiva, triste, sei lá, mas esboça alguma reação...prender isso para você mesmo só vai te prejudicar.
   Júnior abaixou a cabeça e se recompôs o mais rápido que conseguiu:
   _Você quer terminar comigo? Nunca quis que você se machucasse desse jeito. Desculpa..eu disse quando começamos a namorar que não a faria sofrer e acabei te traindo dessa forma.
   _Amor, não fale em traição, você nunca poderia dizer que me traiu...eu aceitei as consequências e não, não quero terminar contigo. Nós vamos  superar isso, você vai ver...
   _Assim espero_ Júnior se acalmou. Carla segurou suas mãos e disse:
   _Vamos superar isso juntos.
   _Te amo.

2 comentários:

  1. É engraçado, o texto é público e você mesmo divulgou no seu Facebook, mas soa tão íntimo que parece que eu estou invadindo sua privacidade. De certa forma, acredito que a intenção era bem por aí, então parabéns pelo trabalho.

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    1. Sério que se sentiu assim? Me sinto muito feliz, Maycon, em saber que consegui passar essa sensação, mesmo não tendo a intensão de chocar de qualquer forma com esse conto.
      Obrigado mesmo por expor o que sentiu ao lê-lo. =D

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